Textos e livros
Textos sobre a obra de Guilherme Parente
Não há muito, no prefácio a um volume sobre Guilherme Parente, tive ocasião de falar de uma viagem de ida-e-volta ao reino da pintura.
A verdade destas idas-e-voltas mede-se pela bitola de um empenho sensível, movido por uma necessidade interior em que pintor e pintura se encontram, amam, lutam e ganham a batalha para sempre perdida... Luta com o Anjo: Delacroix a pôs em cena, em uma das suas últimas obras em que a pintura canta, corpos dos lutadores, terra que pisam, árvore que lhes dá a sombra da madrugada, à hora em que tombam extenuados, entre vida e morte...
A pintura é esta luta sempre necessária e sempre insuficiante, para além das figuras representadas, dos ícones e dos símbolos de um discurso alusivo. Caso de formas e de cores, de linhas e de planos, de espaços e de ritmos. Parente foi apanhado pela fascinação deste jogo, e passou, sem se enganar, pelas aventuras de histórias contadas - histórias feéricas em que as personagens e os objectos vinham de além de um quotidiano que ele já sabia feito de cores e de luzes. Feito, em suma, de "pintura-pintura", como convém dizer.
Por isso não parece necessário voltar a falar da viagem feita pelo pintor porque, verdadeiramente trata-se de uma só viagem - ao fim da pintura, quer dizer, ao fim do dia, da luz, da vida...
Diante da pintura de Guilherme Parente, é de pintura que importa falar, pois é pintura que se olha. Certo é que nunca se olha outra coisa quando se olha um quadro: o resto, a identificação possível das figuras e o sentido do tema, só depois vem, função segunda do olhar-percepção. "Um quadro, antes de ser um cavalo de combate, etc., etc... é uma superfície plana coberta de tintas, etc., etc..." A coisa foi escrita há quase uma centena de anos (e sempre praticada...), demo-la assim por dita. Se a citação volta a esta folha é apenas porque os anos 60 puzeram em circulação um sistema "pop" de imagens que confundiu as pistas picturais do Ocidente e a acção "bad" de um expressionismo requentado esqueceu que Kirchner ou De Kooning eram pintores tão profundamente empenhados na pintura quanto Pollock ou Rothko. Parece portanto de novo necessário lembrar a palavra de Maurice Denis - e utilizar a expressão avançada cerca de 1965 por um jovem crítico francês desaparecido, esta "pintura-pintura" na qual muitas vezes gosto de insistir. Pintura-pintura como pintura. Pintura como Guilherme Parente, no caso aqui presente - subtil, essencial, preciosa.
Há, sim, barcos e casas, árvores e pássaros, núvens e rios nos quadros do pintor - e porque não? As coisas encontram-se neles como se emergissem dum magma de cores esmagadas ou delicadamente postos na tela, como se involuntariamente nascessem, por efeito do acaso, numa espécie de geração espontânea. Lentamente, do gesto do pintor que se advinha, vê-se sair um objecto, mesmo uma personagem que toma traços e cores e se põe a existir ou a andar, plumas ou vapores que o vento da imaginação leva pelos ares... Mas o que deve existir pode igualmente vir de um acidente, como toda a vida. "Little bang" que o pintor faz e refaz na sua modéstia necessária, como um poeta tece as palavras na sorte de todos os acasos. Sons e cores cantam docemente como a água corre e as crianças riem nos seus sonhos, num tempo suspenso e lírico, todo róseo, azul celeste, branco...
Para isto serve a pintura, quando o tempo é bom. Na pintura-pintura de Guilherme Parente, jamais faz mau tempo, por impossibilidade metafísica. E muito bem é que assim seja, num pintor português lírico e fora do tempo...
José-Augusto França
Presidente de honra da Association Internationale des Critiques d'Art, AICA
Fevereiro 1992
Como dizia um dos grandes expoentes da corrente neorealista, o poeta, professor, cientista, pintor, Joaquim Namorado, cujo centenário se assinala,
As coisas são provisórias
como se fosse no fim
deixar ficar no meio um livro aberto
pesar os prós e os contras refletindo
ser inflexível na ação
as coisas são provisórias
o que se ama e o que se teme
o que se espera e o que se alcança
os dias
só o que se faz permanece.
A esperança, por isso, deve ser a última coisa a desaparecer do nosso pensamento. Sendo assim, há que encontrar, com entusiasmo, motivos para concorrermos, cada um por si, e todos coletivamente, para não nos deixarmos desmoralizar sabendo que as coisas são provisórias…
Ora, nessa ordem de ideias, considero, sem dúvidas e, julgo eu, com razão, que a ação cultural é decisiva para que os espíritos se tranquilizem, nem que seja por um só momento, momento esse fundamental para que as pessoas possam livremente sentir que há solução para o que é negativo, perverso e que a tantos atinge. Não devemos desanimar, temos de ser criativos e concorrermos, todos, de forma determinada e inflexível, no sentido de se passar das tais situações transitórias, de um mundo tumultuoso, para uma realidade que nos traga beleza, alegria, harmonia a toda a sociedade.
O que tem de ser considerado com firmeza, é não facilitar a vida a autores de obras especulativas, de duvidosa valia artística ou intelectual, endeusados pelo Poder sem que cheguem a aperceber-se, na maioria dos casos e na sua incomensurável vaidade, que são usados como artistas do regime, que um artista, na verdadeira aceção do termo, tem de odiar, de recusar.
Os artistas plásticos desempenham um papel relevante em qualquer sociedade. Impõe-se criar condições para facilitar a todos os homens e mulheres, às crianças, aos estudantes, aos professores, conhecer as suas obras, com elas conviverem, já que a arte é para ser disfrutada e não circunscrita a umas tantas elites. Têm de ser divulgadas o mais possível. Um artista, isolado no seu atelier, entregue ao seu pensamento, à sua imaginação e inspiração, não pode andar preocupado em arranjar locais para expor o fruto da sua produção cultural.
Como acontece, com a tão fina, tão profunda e simultaneamente tão alegre obra de Guilherme Parente, pintor de vanguarda, que nunca por nunca se põe em bicos de pés, que nunca tenta conquistar as boas graças dos críticos (ou pseudocríticos), que nunca perde um mínimo de personalidade em busca de quaisquer benesses fagueiras, não é artista para cedências. Rever os trabalhos de Guilherme Parente constitui, para todos quantos admiram a sua obra, entre os quais me conto, um enorme prazer já que os seus quadros são algo de cantante, eivados de poesia, como que um hino à esperança. Não falo da sua riqueza estética ou da sua técnica. Não é preciso, está à vista de todos e outros o farão mais adequadamente.
A melhor homenagem que posso prestar a Guilherme Parente é que o seu nome, a sua obra, a sua humanidade, motivam as palavras que aqui deixo expressas.
João Corregedor da Fonseca
23 de Fevereiro de 2015
Guilherme Parente deu cor, luz e forma ao nosso imaginário coletivo com a sua pintura. Estão lá os adamastores inabaláveis, os mostrengos das trevas do fim do mundo, cavernas profundas, fantasmas que em Parente assumem ectoplasmas feéricos, padrões deixados nas areias ultramarinas pelos vários Diogo Cão, nau Catrineta e mar, muito mar, sempre o mar.
E a todos deu alegria com cores vivas, vibrantes, puras, que em Parente não há tons glaucos, pardacentos ou desmaiados. As cores de G. Parente são otimistas e tangíveis, a sua pintura sai de Camões, do infante, de Pessoa e de D. João II.
A epopeia lusa quinhentista ganhou modernidade através da pintura de Parente e os desafios, os riscos, os medos, abismos e fantasmas, que o que é desconhecido causa aos humanos, é nos apresentado pelo pintor nesta mostra das suas obras. São, afinal, os desafios, riscos e medos com que o Centro Champalimaud para o Desconhecido e os seus cientistas se debatem no dia a dia, porfiando chegar sempre mais longe, afastando mostrengos, vencendo adamastores, invadindo com intrepidez o desconhecido e, assim, avançarem na ciência.
Há um paralelismo entre a razão da epopeia marítima que Parente consagrou nas suas telas e a razão da Fundação Champalimaud e do seu Centro para o Desconhecido. Há, em quinhentos como agora e aqui, um objetivo e um rumo: descobrir.
Fundação Champalimaud
Abril, 2014
Esta exposição começa e acaba com duas telas circulares, como dois óculos, duas vigias, duas janelas, de entrada e saída de uma constelação encantada, que se projeta para um espaço infinito. As figuras, os objetos, as casas, os barcos, os peixes e outros seres marinhos, os pássaros, as nuvens, vagueiam suspensos num habitat mágico de múltiplas dimensões e variegadas cores.
O universo de Guilherme Parente descola e remete-nos para o maravilhoso, o encantamento, a utopia. É a crónica de uma viagem que só metaforicamente se faz numa nau por um mar tormentoso. É um itinerário sem principio nem fim, que não seja a constante da própria viagem, como uma errância e um destino.
Há nas narrativas de Guilherme Parente alguma coisa de As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, recolocadas no Tejo, na praia de Belém, lugar inicial, com caravelas em vias de zarpar.
A pintura de Guilherme Parente é uma pintura de contrastes cromáticos fortes, de alegria e de esperança. Poucas vezes encontramos um artista que nos tome pelo braço e nos convide para a aventura da descoberta desta forma temerária e otimista, de mergulho permanente no sonho. Porque afinal o sonho, dizia o poeta, o sonho comanda a vida.
António Meio
Comissão Executiva do Centro Cultural Aziz Ab' Saber do OPA instituto universitário
2014
O Rogério de Moura é que devia escrever este texto, porque é ele que sabe das coisas antes que os outros saibam. E também porque é ele que vê as coisas antes que os outros vejam. E mais: publica as coisas que lê antes que os outros leiam. Ou seja, tem o gozo supremo de pôr os outros a trabalhar para ele como quem trabalha para a posteridade. Mas a culpa é do Guilherme Parente, que é pintor, dos pintores a sério, que convive com a cor, o motivo e a tela, como quem está com os amigos. Em Portugal, no Japão, na Inglaterra... Na nossa pátria — Terra. O planeta do Guilherme é tão grande como o sonho de um português que partiu, mesmo que nunca tenha saído do mesmo sítio: Imagina, pensa, age, longe do que pensamos imediatamente. Pinta com pincéis que nunca imaginámos. Ou que julgamos não ser possível pintarem assim. Estamos todos lá. Com o barco, com o céu, com o papagaio. Com os nossos castelos de areia.
Elísio Summavielle
Março de 2000
Texto escrito no Chiado, na companhia de Rogério de Moura e Guilherme Parente
(…)
Já tive ocasião de afirmar, em prefácio de uma a das tuas magníficas exposições, que não sou crítico de arte, embora por vezes não resista (como é o caso) em sublinhar com gosto, o que sinto perante o que me agrada e me emociona. De ti já está quase tudo dito, e com a probidade dos nossos "generais" da crítica, figuras referenciais como o José-Augusto França, Rui Mário Gonçalves, ou Fernando de Azevedo. A tudo isto talvez ouse, mais uma vez, acrescentar a minha costela de historiador de uma nação dispersa, para, mesmo sem o talento dos nossos poetas e pensadores, sublinhar a importância do teu trabalho plástico como traço de união e comunicação por todos os lugares por onde fomos e vamos passando. A tua arte é sempre perceptível em qualquer ponto do mundo, não só pelo apuramento de uma técnica dominada com grande mestria, mas também pela grandiosidade poética de uma candura pessoal tão própria, e que tanto tem a ver com aquilo que há de melhor nos portugueses — a capacidade de amar em qualquer porto. Por tudo isso, bem hajas, Guilherme. Bem-haja a Câmara Municipal de Lisboa por saber merecer-te. Bem hajam os nossos companheiros de destino em Goa e no mundo (que afinal é tão pequeno...). Até sempre!
Elísio Summavielle
Lisboa, Maio 2001.
Nascido em Lisboa, em 1940, Guilherme Parente é um dos artistas mais interessantes da sua geração, revelado, desde os anos 60, como autor de uma obra que, hoje, nos surpreende pelo seu grau de pureza e autenticidade. A sua pintura é um espectáculo visual, que nos seduz pelo poder contagiante da cor, em cenários informais, onde emergem ascensionais colunas arquiectónicas e longilíneos feiticeiros, que contracenam com gigantescas borboletas brancas e multicolores, que esvoaçam no céu azul claro, primaveril. Na paleta diurna do pintor predominam azuis claros, amarelos, verdes e laranjas, a que se ajustam o ouro, a prata, o branco, o preto e o cinzento. Com esses tons de vibrante luminosidade, o pintor constrói uma requintada imagética pessoal, intensamente lírica. Em largas manchas cromáticas irrompem torres, colunas, avejões, morcegos, personagens aladas, flores astrais, sóis, luas, nuvens, jardins e mares suspensos, embarcações de nostálgicas viagens imaginárias. Figuras plasmadas, de contornos difusos, são reduzidas a signos, inscritos em amplas áreas pictóricas. A narrativa é apenas sugerida por abreviados signos gráficos, inseridos na simbologia onírica da cor envolvente, cujo encantamento nos remete para a poética do maravilhoso da infância, recriada em perspectiva adulta. No caso de Guilherme Parente, a ingenuidade é sinónimo de autenticidade, plenamente assumida na pureza dos meios expressivos e técnicos a que recorre, seja gravura, aguarela, acrílico, óleo ou pastel. Pintar é um acto mágico e intimista, na comunhão do pintor com a pintura. Imagens de colinas, praias e horizontes longínquos, rebatidas no plano frontal do suporte, criam súbitas e inesperadas aparições fantasmáticas, reminiscências de uma memória solar, inextinguível. A cor lisa reafirma a bidimensionalidade da tela rectangular, por vezes, excessivamente alongada na horizontal, verticalmente seccionada, como faces de biombos, que se articulam no espaço real, tridimensional.
A vocação expressiva e decorativa desta arte amável e serena, nunca agressiva, justifica-se não só na concepção de biombos, à escala natural, como também na concepção meticulosa de mini-quadrinhos, emoldurados como joias de preciosos nacos de pintura, desenvolvendo uma íntima relação entre o pormenor e o todo. O quadro dentro do quadro proporciona ver a pintura como objecto que em si mesmo se inspira, conjugando, através de uma notável unidade de estilo, a dimensão lúdica e a dimensão metafísica, na montagem e desmontagem da imagem. Na sua fluidez, a pintura auto-comenta-se e documenta-se no labor artesanal do pintor, que se projecta inteiro no que faz, em diálogo aberto e sincero com o mundo que o rodeia. É um deleite para os olhos ver o que a pintura de Guilherme Parente nos ensina, no modo delicado, directo e espontâneo como coloca a mancha de cor, que engendra a obra que, por seu turno, se apodera de um vocabulário pessoal que não se esgota nunca, porque os símbolos, sendo os mesmos, surgem em diferentes contextos na mutação que desencadeiam de quadro para quadro. É uma lição de cor e simplicidade de expressão, que não abdica do prazer de pintar com grande sensibilidade plástica. Encanta ver como os tons e as formas se ajustam; formas e tons apenas apontados numa ágil escrita pictórica neo-figurativa, que evoca Dufy e a cor sensorial de Bonnard, Klimt e outros pintores simbolistas. Admiráveis vermelhões e laranjas contrastam com amplos azuis claros; largas áreas róseas e brancas admitem a vizinhança de verdes e amarelos luminosos, onde, por vezes, se demarcam sucintos negros. Ressalta a afeição como toda a superfície cromática é tratada.
A iconografia do pintor processa-se com inegável coerência e sem sobressalto, ao longo de mais de trinta anos de prática continuada, desde a gravura à pintura, que se objectualiza em biombos, habitáculos fantasiosos, colunas cerâmicas e medalhas de minuciosa concepção. Etéreas figuras-signos desfazem-se e refazem-se, na atmosfericidade colorida, que invade o espaço como uma nuvem ou uma miragem. O poder contagiante da cor informal de contornos difusos contrasta, por vezes, com nítidas superfícies demarcadas. Mas a tendência é para informalizar a geometria latente, em favor da espontaneidade da mancha, onde se inscreve o grafismo sintético, que reduz tudo a signo. A imagem emerge da pintura e nela recria a sua ancestral vocação cenográfica, em décors feéricos, plenos de fantasia. A movimentação é suave e flutuante. Tudo paira no espaço onírico da pintura de Guilherme Parente. Incorpóreas silhuetas de aves e morcegos, borboletas, flores, estrelas, sóis, luas e nuvens, árvores, frutos e cogumelos, girafas, cavalos marinhos, dragões e feiticeiros, torres, pilares e pirâmides, objectos aparentemente moles e sem peso, são adereços de um cenário animado, onde todas as fronteiras se dissolvem na fusão do real com o imaginário. S. Jerónimo, eremita solitário, abandonou o livro da meditação, para se transfigurar em longilíneo feiticeiro ou mágico de chapéu alto, personagem enigmático que persiste no espaço palpitante da sua actual pintura, marcada pelo ritmo impulsivo do pincel e da espátula, que acentuam a tactilidade da matéria informal e a vibração do pigmento. Sem violência nem conflito, a pintura de Guilherme Parente capta a essência do sonho feliz, deixando transparecer as suas próprias metamorfoses simbólicas. Num estado de rêverie, quase em êxtase, a mão do pintor apenas regista os impulsos mais íntimos e o que os olhos desvendam com emoção. Num espaço inundado de luz e cor, a mínima variação é já um excesso. Excessiva, sintética e aliciante a pintura de Guilherme Parente atinge o auge no domínio de uma linguagem pessoal que revela uma notável liberdade de expressão.
Eurico Gonçalves
1996
(...) Vê como ardem as maçãs na frágil luz do Inverno. Uma casa devia ser
assim brilhar ao crepúsculo
sem usura nem vileza
com as maçãs por companhia.
Assim limpa, madura.
Eugénio de Andrade - Ofício de Paciência
Não há riscos mas risos, manchas coloridas, formas que pousam um instante e se evadem, verdes luxuriantes, vermelhos vivos ou profundos como rubis, amarelos vibrantes, azuis claríssimos, que sabem anoitecer e os negros são um cântico doce que guarda no seu cofre de silêncio e solitária gestação, os tesouros do dia. As formas do mundo têm uma luz própria, o mundo das formas é o de uma estação sem tempo, ou de um tempo que suavemente amadurece, guardando o fulgor dos seus frutos. O movimento é íntimo e comunica-se a todos os seres deste universo, confere-lhes a grandeza e a simplicidade da luz que tudo envolve, o halo precioso da presença. A pintura de Guilherme Parente convida-nos à descoberta do reino do visível, reino deste mundo, onde se abrem as portas do jardim do paraíso, como sempre que a poesia é invocada.
Maria João Fernandes
in catálogo Guilherme Parente, Galeria Fernando Santos,
Porto, 1995.
Ao princípio, a gravura de Guilherme Parente promete o que mais ou menos em inícios de sessenta a gravura portuguesa prometia em quase todos os jovens gravadores: um compromisso abstracto nascido, em grande parte, das lições de espacialidade textural que S. W. Hayter havia ensinado pouco antes nas oficinas da Gravura. O salto, a reviravolta dá-se, para o artista, em Londres, quando bolseiro da Fundação Gulbenkian, na Slade School, no final dessa mesma década. Lembro-me de ter visto, com surpresa, na altura, provas que me chegaram às mãos. Era uma viragem flagrante; agradecida, sem dúvida, ao impacte ainda da Pop inglesa e a algum neo-construtivismo que, em simultâneo, a acompanhava. Mas, porventura, o mais estranho e por isso mesmo mais surpreendente nelas, vinha a ser o acentuado renovo de uma trajectória icónica na gravura portuguesa; uma iconografia ao mesmo tempo erudita, espiritual e irreverente, absorvendo - e transmitindo, percebe-se isso melhor, hoje - uma desordem magnificamente criadora que chegava pela Inglaterra à Europa ainda antes e diferentemente da comercializada ou comercialíssima irreverência americana. Piero della Francesca, Ucello, Rembrandt, foram, a seu tempo, impulsionadores e sustentadores dessa sua incursão pelo misterioso fascínio das irradiações iconográficas: esvaziando-as, repetindo-as, variando-lhes os contextos e inventando-lhes situações: dos recortes às silhuetas, das sombras às iluminações, as imagens garantiam, assim, a permanência da sua indiscutível categoria icónica. Entre nuvens, pórticos e altares e absurdos de modernidade, implantava, não obstante o irrespeito, um saudosismo lírico e votivo, algo de resistência sensível, talvez que emocionalmente portuguesa, face aos cortes mais sincopados e brutais de uma arte em transe de aflição e de ruptura. S. Jerónimo, a que apetências sentimentais conduzem a imagem e a fazem reaparecer ao longo da obra, como que sublima este momento de inventário votivo de Guilherme Parente. A segurança técnica de que o gravador precisa, o oficio, está então conquistado; este permite audácias, variações, que contrastam com a perseguição que faz da invariante da imagem. Este conflito aparente, conflito hábil, virá a personalizar, ainda, outras obras de Guilherme Parente e virá, sobretudo, a originar um prazer da experiência, um revolver de técnicas sem que, só por si, estas últimas se tornem, alguma vez, o objectivo principal, a razão de ser das imagens aparecidas. Acontecem-lhe como irrequietude, acontecem-lhe quase como uma espécie de brinquedo, uma vez sabidas, constantemente armado e desarmado sem que se dê por isso. Nada, porém, de mais sério do que esse jogo, do que essa irrequietude, que nos aparece feita como uma imagem de candura, sem qualquer hostilidade visível. Nem mesmo aquela que decorre do esvaimento trazido pelo trabalho, nem a outra que geralmente a precede, a hostilidade do artista contra o meio, a sociedade, os outros, ele próprio. Quando Rui Mário Gonçalves a seu respeito lembra que: «A subjectividade não é arbitrariedade» e que «A subjectividade ou é um todo coerente ou não é nada», toca bem de perto no essencial de Guilherme Parente. Porque sem se entender a coerência do seu discurso plástico e narrativo, sem o entender no pleno de uma intransigente subjectividade nada dele se entende.
Nada nele é febril e tudo contém o maravilhoso. Não é uma alucinação ou um contínuo de alucinações, mas encaminha-se para o êxtase, por vezes em alegria, outras vezes em meditação. Do sonho à realidade não há aquele choque conhecido de passar-se de um estado a outro, por esta ordem ou pela ordem inversa. Nada nele é ponto de partida como noutros artistas. Tudo é ponto de chegada e não fim. Tem um dinamismo próprio a quietude que o habita, a tal irrequietude reconhecível e ao mesmo tempo invisível. Às vezes é só o branco do papel e as sombras das formas ligeiramente salientes como baixos-relevos; ou escavadas, trazidas para fora, como nos egípcios, pelo seu próprio côncavo. A chapa é, por vezes, a mesma, praticamente, usada de duas maneiras. E pode ser aventura de Sindbad, o marinheiro, o que aquilo quer dizer. Ou os barcos nossos, ou o mar nosso, ou o sol e as nuvens nossas. É indistinto, isso. Não porque lhe seja indiferente, julgo (nada lhe é indiferente neste seu território onírico). É indistinto porque na curva da terra onde se encontra tudo passa por lá num certo instante ou, ocasionalmente, num certo instante, tudo pode vir a encontrar-se ali. Claro que é magia ou eu falo disso a seu propósito. Mas outra coisa não pode ser, vir do Santo, pelo Diabo, até à Bruxa. Que são naqueles silêncios iluminados de aguarela por cima do traço impresso, mais do que terrenos propícios ao inusitado das façanhas dos mágicos? De onde vem o gigantismo das coisas senão desse brotar do chão, sem ordem, por vontade do bruxo, do mago, do adivinho, de uma força inesperada e irreprimível no meio das paisagens, rompendo-as, até se criar, entre o céu e a terra, um pequeníssimo planalto, plataforma de rêverie, de sossego, de meditação ou de solitária alegria depois do acontecido? Porquê este permanente andamento de viagem, este vai e vem de alma-tapete-voador, e minarete em crescente de lua, a choupana de litoral com vela branca e mar azul-verde, verde-azul, ao fundo, sempre encantada e lesta? É assim porque o prazer é assim: um lugar inventado, uma felicidade vivida nele ou nele entrevista, isto é, podendo ser inventada também. A arte tem esses meios. As gravuras de Guilherme Parente, provam-no; provam ainda que fazer tal não é escapismo, fuga à verdade, ausência de estar na terra. A terra comporta bem, não os expulsa a estes provadores de sonho que revelam, que gozam, como Guilherme Parente desde a pedra à bandeira e à grinalda que flutuam na ligeireza do ar; aos cavalos e cavaleiros, aos insectos, às gaivotas, aos barcos e às meninas dançando; ao chapéu do mago e às tendas do deserto, ao deserto e às montanhas; às nuvens e ao rei, à princesa, à baleia e ao elefante; ao S. Jorge e ao seu dragão deitando fogo, ao fogo. E de novo a S. Jerónimo mais ao seu leão, o seu recolhimento e generosidade e, por último ao pintor. E tudo isto feito com um gesto desprendido, lavado, transparente e alegre. O contrário do esforço, tal como naquelas festas antigas e sumptuosas de cores e figurações - aqueles deslumbrantes ancoradouros de seda e ouro das viagens para Cythére...
Fernando Azevedo
Janeiro de 1993
Trinta anos de actividade artística não só permitem como exigem um balanço. Este é aqui feito por um crítico que, embora conhecendo de longa data o artista, ensaia mais a comunicar, temperada e moderadamente, as ansiedades, se não os sonhos que os mistérios desta pintura nele provocam, e não tanto seguir exteriormente a carreira, com os seus sucessos e fracassos públicos, premiações e adiamentos, numa objectiva seriação (...)
“Toda a grande obra gira sempre em torno de um centro”, disseram Alberto Camus e tantos outros. Daí os retornos visíveis, os reencontros desejados e outros inesperados. Muitas vezes no mistério da criação artística, os retornos inesperados são os mais reveladores.
Na própria realização encontram-se as soluções adequadas e revela-se o imprevisível. Paul Klee dizia que a «a pintura não reproduz o visível, torna visível». E o filósofo Alain aconselhava aos escritores e aos artistas: «Pensa na tua obra, sem dúvida. Mas só se pensa naquilo que existe. Portanto, realiza a tua obra».
Penso que a obra de Guilherme Parente gira em torno de um centro. Ele deve ser, quanto a mim, procurado na crença da existência de uma sageza natural que em cada momento permite ao homem interpretar endemicamente o mundo.
Há nisto uma ingenuidade perigosa? Pois há! É um risco poético. É uma ingenuidade que Almada Negreiros sublinhava ter como significado o nascimento livre.
O poeta, tal como o considero, pensando em Guilherme Parente, é o homem que renasce continuamente. Que os psicanalistas encontrem, ora na criança, ora no velho, o símbolo da sabedoria superadora dos conflitos da vida interior (...)
As obras realizadas entre 1962 e 1968 por Guilherme Parente caracterizam-se por incursões no abstracionismo, compartimentando a superfície do suporte com linhas retas, (verticais, horizontais e diagonais). A partir destas linhas, sugeria planos transparentes, tratados com variados graus de luminosidade, construindo espaços puros. No final deste período, começou a realizar gravuras dignas de nota, consequência dos cursos que seguiu na Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses. No polémico «Salão M-67» (S.N.B.A., Janeiro de 1968), eu próprio, como membro do júri, me bati com êxito para que não deixasse de ser mostrada a gravura (informalista) do desconhecido Guilherme. Foi a única gravura presente nesse certame. Para o artista, ela marca talvez, o início de uma atividade centrada durante alguns anos nesta modalidade. Efetivamente, os anos 1968-1970 foram ocupados pela aprendizagem, a nível superior, da arte de gravar, como bolseiro da Fundação Gulbenkian, na Slade School, em Londres. Na capital britânica teve a oportunidade de contactar com Bartolomeu Cid. A visita a museus sugeriu alguns motivos para as suas gravuras de então. Nelas se notam utilizações de figuras concebidas por Piero della Francesca (nomeadamente o «Baptismo de Cristo») e por Rembrandt («Velho Filósofo»).
(...) Nestes anos, em confronto com as vantagens internacionais, Guilherme Parente vem com o seu lirismo acrescentar uma dimensão «metafísica» a um neo-figurativismo quase «pop». Mas não há nele gigantismo americanóide nem terrificante insolitismo. O pintor é um tranquilo receptador das imagens alucinantes, e funde os opostos conceitos numa experiência íntima, em que participa inteiro.
A sensualidade desempenha uma função importante nesta experiência. (…)
As linhas e as cores são conjuntamente orquestradas; (…) A movimentação é suave, como uma flutuação, como uma vibração feliz. Onde se pressente a agitação, há também um apelo para o sossego. A orquestração dos elementos picturais serve, portanto, um sábio doseamento de tensão e distensão, na oferta do espetáculo visual. Este espetáculo é olhado com naturalidade, mas revela o sobrenatural. Os olhos ágeis depressa determinam a fixidez do espaço e das arquiteturas. Mas o imaginário é mais rápido do que os olhos. (…)
De acordo com interpretação que faço da aventura poética de Parente, a expulsão da conflitualidade é a constante das suas opções.
Não há conflitualidade, não há drama. Devemos por isso considerar sempre a globalidade dos seus quadros como uma imagem única; e devemos procurar, também nos simbolismos, os significados que os tornam coadjuvantes uns dos outros.
(...) Em suma, a mensagem da obra de Parente é aquela que o ajuda a ele próprio a encontrar a sua plenitude vivencial e convivencial: prazer sem agressão, humor sem sátira, festa sem perseguição.
Como aconselham os psicanalistas junguianos, a nossa atitude deve ser como a da árvore: não se aborrece quando o seu crescimento é obstruído por alguma pedra, nem faz planos para vencer os obstáculos. Tenta simplesmente sentir se deve crescer mais para a esquerda ou mais para a direita, em direção à encosta ou afastada dela. «Tal como a árvore, devemos entregar-nos a este impulso quase impercetível e, no entanto, poderosamente dominador — um impulso que vem do nosso anseio por uma autorrealização criadora e única. É um processo no qual é necessário, repetidamente, buscar e encontrar algo ainda não conhecido por ninguém. Os sinais orientadores ou impulsos vêm não do "ego", mas da totalidade da psique: o "self" (Marie-Louis von Franz).
A aventura poética de Guilherme Parente é autêntica e prometedora. Há nela abertura para novas dimensões da imaginação, porque há «rêverie» e não há fanatismo. E há encontro, porque há essencialidade.
Rui Mário Gonçalves
in "GUILHERME PARENTE", Edição Cosmos, 1990
«Amamos demasiado as estrelas para recearmos a noite» (1)
A mais elementar lógica garante-me que Carl Sagan não viu as pinturas de Guilherme Parente, e o bom senso aconselha-me a duvidar que o Guilherme Parente tenha chegado a estas imagens depois de ler «Cosmos». Mas, mesmo assim, e conforme ao pensamento de um antiquíssimo filósofo chinês, Chuang Chou, para quem as dez mil coisas são uma só, admitir-se-á, sem dificuldades de maior, que acerca destas imagens se poderia evocar uma breve passagem de Sagan que afirma: «embarcamos para a nossa viagem cósmica com uma pergunta que foi pela primeira vez formulada nos alvores da nossa espécie e repetida geração após geração, sempre com o mesmo fascínio: o que são as estrelas? (...)Começamos como viajantes e viajantes continuamos a ser». De que nos falam elas, pois, senão de viagens, no espaço e no tempo, da pintura e da vida? No tempo da pintura, evocadoras ainda das sereníssimas aguarelas de Klee, em Marrocos; no espaço da vida, de um inesgotável imaginário viajante, que se dispensa do aparato da ultrassofisticada tecnologia e da astrofísica, para se socorrer tão somente de lendários tapetes voadores que, — como nas mil e uma noites que não receamos, mas antes desejamos — igualmente nos transportam de estrela em estrela, sobrevoando os oceanos —os terrenos e os cósmicos. Apraz-me olhar para elas assim, como se, no mais saboroso sentido ilustrativo, constituíssem folhetos de viagem para publicidade de uma qualquer transportadora intergaláctica, à medida dos nossos sonhos mais desmedidos: porque a arte é afinal também isso, a promessa inexorável do desmesurado, da visita tornada possível aos universos intocados, o ágil embraiador dos nossos mais íntimos fantasmas e anseios, a promessa do devir. Esta pintura faz-me também pensar em praias, e, nota-o ainda Sagan, «a praia faz-nos pensar no espaço». Parece-me, de resto, que esta saudável evocação da luz e do calor, nos remete de imediato para o que, tomando agora os termos de uma reflexão mais directamente conectada com a história das formas, se poderia entender como reapropriação actualizada e actualizante de uma memória pop, tanto mais interessante quanto passa à margem dos modismos em voga, cristalizados em figurinos de consumo fácil. Sabiamente ela encaminha-nos em direcção a um universo de pura fantasia, literalmente fornecendo-nos os meios para aceder a essa dimensão de viagem de que (quase) toda a arte é portadora. Relato de imaginárias andanças, estas imagens celebram, na sua fulgurante presença, na luminosidade das suas cores e no sfumato das suas névoas de aguarela, esses imemoriais anseios de transpôr fronteiras — as físicas e as da fantasia, — e magicamente transportam-nos aos mais imprevistos cenários, numa vertente de alegria límpida e solar, como numa magical mistery tour transpictural. A pintura de G.P. assume assim, cristalina, quase ingenuamente, esse antiquíssimo amor pelas estrelas que afasta o receio da noite, incessantemente recolocando a questão do que elas possam ser, e mostrando-lhes uma face recôndita, só tornada visível através dos telescópios da pintura: a sua face encantada, onde podem ainda mover-se, como num teatro de sombras, as míticas criaturas da nossa fantasia. «Estamos finalmente prontos para zarpar a caminho das estrelas» (2).
Bernardo Pinto de Almeida
Porto, 26 de Fevereiro de 1985
(1) Chuang Chou (c. 300 a.C.), citado em «Cosmos» de Carl Sagan.
(2) idem, p. 228.
Livros sobre Guilherme Parente
"Guilherme Parente. Conversa. Vida e Obra" foi apresentado a 15 de Dezembro 2016 na Galeria São Mamede em Lisboa. Este livro é da autoria de Ana Matos, numa edição da Imprensa Nacional/Casa Da Moeda e Galeria São Mamede.